A água potável no Brasil pode conter 22 tipos de agrotóxicos, 13 de metais pesados, 13 de solventes e seis de desinfetantes. Essa presença contaminante é tolerada até níveis fixados em uma escala oficial, que às vezes é ultrapassada por conveniências econômicas e devido a controles inadequados. Até 1977 as autoridades determinavam que a água própria para consumo humano não podia conter resíduos de mais de 12 agrotóxicos e dez metais. Nada sobre os demais. Desde então foram feitas duas atualizações, em 1990 e 2004, “legalizando” os resíduos de novos insumos químicos usados na agricultura e na indústria, lamentou Wanderlei Pignati, médico e professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Em comparação, a União Europeia só admite cinco agrotóxicos, com limites inferiores aos previstos no Brasil e um total que impede que cada um chegue ao máximo tolerado, cuidado este também não adotado no Brasil. O controle de qualidade da água potável, ainda baseado em eliminar bactérias, não acompanha a crescente contaminação química, que exige equipamentos “caros e sofisticados” em medições complexas, afirmou Pignati, especialista que é referência nacional na pesquisa e na luta contra o que se considera abuso de venenos agrícolas.
O Brasil se converteu, há três anos, no maior consumidor mundial de defensivos agrícolas de cultivos, apesar de produzir, por exemplo, menos de um terço de grãos do que os Estados Unidos. É o custo da liderança em agricultura tropical, alcançado nas últimas décadas e que lhe permitiu exportar US$ 76,4 bilhões em bens deste setor no ano passado. A façanha econômica brasileira se concretizou graças a muita pesquisa agronômica e intenso emprego de fertilizantes, inseticidas, herbicidas e fungicidas, além da aposta nas monoculturas extensivas, especialmente a soja, que se converteu no principal produto das exportações, superando de longe os tradicionais café e açúcar.
O Estado do Mato Grosso, no centro oeste do país e na fronteira sudeste da Amazônia, sintetiza essa mudança ao se constituir no maior produtor nacional de soja e, por extensão, também o maior consumidor de defensivos agrícolas, denominação para os agroquímicos preferidos pelos produtores e camponeses.
Além de expandir a área plantada, o que ocorre a partir do desmatamento, o setor produtor local intensificou o uso de agrotóxicos. “Há dez anos aplicavam-se oito litros em um hectare de soja, hoje são dez litros”, disse Pignati. “Os agrotóxicos são uma droga lícita, como o álcool e o tabaco”, acrescentou ao responder uma pergunta da IPS. O modelo de desenvolvimento agrícola brasileiro estimula seu uso, isentando-os, por exemplo, do imposto comercial que, no entanto, é aplicado em medicamentos, em uma prioridade reversa, em detrimento da saúde, ressaltou o especialista.
Pignati é um dos ativistas da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, lançada no Mato Grosso no começo de junho, que se dedica a estudar o assunto e divulgar seus conhecimentos desde que chegou à conclusão de que é mais eficiente atacar as causas das enfermidades do que formar médicos para tratamentos individuais. Na universidade, vinculou-se ao Departamento de Saúde Coletiva. O Mato Grosso consome cerca de 150 milhões de litros de agrotóxicos por ano, equivalente a 50 litros por habitante, contra a média nacional de 5,2 litros, segundo Pignati.
É inevitável contaminar as águas em um Estado que possui milhares de nascentes fluviais que alimentam as bacias do Rio da Prata e outras quatro amazônicas, alertou Pignati. O sistema de tratamento da água para consumo da população data de “cem anos atrás” e busca retirar contaminantes por decantação, mas muitos produtos químicos escapam desse método e ficam dissolvidos na água, explicou. Seus efeitos não são apenas as diarreias, mas neurológicos, cancerígenos, endocrinológicos, psiquiátricos e sua presença persiste durante décadas.
A “disfunção endócrina”, um tema recente evidenciado pela proliferação de diabetes, hipotireoidismo e outros distúrbios, servem de alerta para esse problema, alerta o médico. O risco sanitário no Brasil aumenta pelo uso de venenos que há muito tempo foram proibidos em outros países, especialmente na Europa. O caso emblemático é o Endosulfan, um inseticida responsável por intoxicações fatais, abortos, má-formação fetal e danos aos sistemas nervoso e imunológico.
Em todas havia DDE, que é no que se transforma o DDT (dicloro difenil tricoloroetano), e em 44% delas foram encontrados resíduos de Endosulfan. Mas estas críticas e pesquisas são relativizadas por dirigentes políticos do mundo dos grandes negócios agropecuários. A comparação com a Europa é indevida, devido às condições distintas. Os agricultores brasileiros cumprem as regras fixadas pela Anvisa, o órgão regulador do Ministério da Saúde, afirmou Seneri Paludo, diretor-executivo da Federação da Agricultura de Mato Grosso.
Por sua vez, Edu Pascoski, secretário de Agricultura e Meio Ambiente de Lucas do Rio Verde, argumenta que os resíduos identificados nas pesquisas em seu Município “estão dentro dos níveis aceitáveis”, fixados pela Anvisa. Também justificou que o DDT e o DDE permanecem nos seres humanos por mais de 60 anos, por isso o que foi encontrado nos estudos de Danielly Palma pode refletir o uso do produto em etapas muito anteriores à sua proibição em 1998.
Reportagem de Mario Osava, da Envolverde/IPS
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